terça-feira, 2 de fevereiro de 2016

Zacarias 6.9-15 - O Reinado e o Sacerdócio do Messias

Logo após o profeta Zacarias ter sua oitava e última visão, Deus fala com ele acerca de uma tarefa bastante significativa, apesar de simbólica. O que divide os comentaristas é o papel desse trecho dentro das visões. Há quem considere os vv.9-15 como sequência da visão dos vv.1-8, ignorando a brusca mudança de linguagem, da figuração, da abrangência e da aplicação da mensagem, além de menosprezar a introdução (v.9) que marca uma nova seção. Por outro lado, há quem pareça simplesmente desligar os vv.9-15 das visões de Zacarias, deixando passar o fato de que ele trata de uma sequência natural de eventos, além do fato de que nada sugere ter havido grande intervalo de tempo entre as visões e a ordem divina de se coroar o sumo sacerdote Josué. Diante dessa dificuldade — e dos muitos obstáculos de tradução do trecho —, ao que tudo indica, a segunda parte do capítulo 6 deZacarias age como uma conclusão para a mensagem construída passo a passo por meio das visões, servindo também de garantia de um “final feliz” para os servos de Deus devido à sua graça e seu poder.
Isso se inicia, como ocorre em outras partes do livro (Zc 1.1,7; 4.8; 7.1,4,8; 8.1,18), com o Senhor se dirigindo diretamente ao profeta (v.9): “Então, veio a mim a palavra do Senhor dizendo”. O que vem a seguir não mais contém seres, objetos ou pessoas misteriosas que necessitam de interpretação, mas homens reais, vindos do exílio, a quem o profeta devia se dirigir e com quem devia interagir (v.10): “Haja uma coleta dentre os exilados Heldai, Tobias e Jedaías, os quais chegaram da Babilônia, e vai tu, no mesmo dia, à casa de Josias, filho de Sofonias.”. Apesar de haver quem sugira que tais pessoas são apenas representações do culto e do relacionamento com Deus, dados os significados dos seus nomes ao longo do texto, o natural é vê-los como pessoas de destaque que possivelmente lideraram comitivas de retorno de judeus exilados na Babilônia de volta a Judá. Mesmo não havendo nenhum outro nome ou qualquer contagem de exilados, é difícil imaginar apenas três ou quatro homens fazendo uma viagem de retorno do exílio. Além disso, o fato de o profeta receber deles ouro e prata (v.11) indica que ou eles eram homens ricos, o que não é muito comum a exilados em terras estrangeiras, ou eram homens influentes que lideravam comitivas que, juntas, podiam trazer ofertas para o templo e atender ao pedido de Zacarias segundo a orientação de Deus. Além disso, o fato de Josias ser citado como “filho de Sofonias”, apesar de não termos certeza de quem se trata,[1] evidentemente é uma menção a alguém conhecido, respeitado e importante em seus dias.
Não obstante o v.10 conter apenas a ordem de o profeta “coletar” ou “receber”, não é dito o que se deveria coletar, fato esclarecido a seguir (v.11): “Coleta ouro e prata, faze uma coroa e põe-na na cabeça do sumo sacerdote Josué, filho de Jeozadaque”. A coleta dos metais preciosos tinha uma função clara: confeccionar uma coroa. A palavra coroa se encontra aqui, em sua forma hebraica, no plural, enquanto nov.14 ela aparece no singular. Há uma discussão se isso se deve a alguma corrupção no texto ou se a coroa era formada por vários diademas colocados uns sobre os outros, mas tais possibilidades não mudam a ideia central de se fazer uma coroação. O que realmente surpreende, e por esse motivo há muitos que defendam que o coroado seria outra pessoa, é o sumo sacerdote receber a coroa feita pelo profeta. O sumo sacerdote Josué era o representante religioso da sociedade judaica daqueles dias, mas o representante político, descendente da linha real, era Zorobabel. Era bastante lógico e esperado que o coroado fosse o príncipe de Israel, descendente de Davi, e não o sumo sacerdote. Por isso, há quem diga que quem foi coroado de fato foi Zorobabel e também quem defenda que duas coroas foram confeccionadas, uma para Zorobabel e outra para Josué. Entretanto, essa discussão é inútil visto que a história nos desvenda que não apenas nenhum dos dois foi feito “de fato” rei, como Judá somente voltou a ter no século 2 a.C. a figura e o ofício de um monarca.
Essa questão recebe uma nova luz mediante a continuidade do texto (v.12): “Então, tu dirás a ele o seguinte: ‘Assim diz o Senhor dos exércitos: Eis o homem cujo nome é Renovo. Ele brotará do seu lugar e edificará o templo do Senhor’”. Tais dizeres expressariam que tipo de cerimônia de coroação seria aquela. Para tanto, é preciso observar o nome oferecido para identificar o rei: “Renovo”. Como dito no comentário de Zacarias 3.8, “renovo” é um broto de árvore e também um título messiânico utilizado por alguns profetas (Is 4.2; Jr 23.5; 33.15). Assim, não era a primeira vez que os israelitas ouviam o termo e já estavam habituados a associá-lo ao Messias prometido pelos profetas pré-exílicos, ao passo que em nenhum outro lugar o sumo sacerdote Josué é associado ao termo, nem é apelidado assim — em Zacarias 3.8 fica clara a distinção entre o sumo sacerdote e o Renovo divino. Além do mais, a sequência contém uma previsão futura que não se enquadrava com a realidade de Josué, em primeiro lugar porque ele já tinha um cargo elevado e não aguardava a oportunidade de uma elevação figuradamente descrita como “brotar”[2] e, em segundo, porque o templo já estava em construção e ele não era o responsável principal pela direção das obras, mas sim Zorobabel.
Apesar disso, é reafirmado que o coroado construiria o templo e deteria em suas mãos a soberania do seu trono, não sendo nem um tipo de “fantoche real” (v.13a): “Ele é aquele que edificará o templo do Senhor, aquele que será exaltado em majestade e se assentará e governará em seu trono”. Diante disso, não devemos olhar para Josué como o detentor das prerrogativas apontadas no texto, mas um representante de quem assumiria tanto a função como a glória do posto real. Nesse caso, longe de ser coroado de fato rei de Judá e assumir as prerrogativas previstas na ascensão do Renovo ao trono, Josué tipifica[3] o próprio Messias e o que ele fará no futuro. Sendo assim, devemos nos perguntar o que significa ser o Messias “aquele que edificará o templo do Senhor”. Para isso, precisamos olhar para as esperanças futuras daquela geração, a qual recebeu do profeta Ezequiel, que atuou na Babilônia entre os exilados, a promessa da construção de um templo e do estabelecimento do culto ao Senhor (Ez 40–48). Essa promessa cria problemas para os estudiosos do Antigo Testamento por ser impossível reconhecer o projeto arquitetônico e os ritos cultuais descritos por Ezequiel em qualquer templo ou tempo já vividos pelos israelitas. Se o povo dos dias de Zacarias visse os últimos capítulos de Ezequiel como algo que se cumpriria no seu tempo, certamente trabalhariam para reproduzir aquela planta, o que não ocorreu. Desse modo, ainda que estivessem em plena obra de construção, mantinham a esperança da vinda de um rei futuro que, além de restabelecer a soberania nacional e territorial, libertando Israel de todos os povos inimigos, também construiria um templo maravilhoso e, segundo esse mesmo versículo de Zacarias, assumiria um poder real e imbatível, cheio de esplendor e glória.
É claro que ainda não se explicou, já que se tratava de uma tipificação, porque não foi escolhido o príncipe Zorobabel para representar o futuro monarca. Porém, essa lacuna é preenchida com o que vem a seguir (v.13b): “E [também] será sacerdote em seu trono e haverá concordância entre os dois cargos”. O uso de Josué como tipo do Messias se devia ao fato de que o “Renovo” não seria apenas rei de Israel, mas também “sacerdote”. A ideia de um “rei sacerdote” já estava presente em Davi e em seus sucessores (Sl 2.2; 110.2,4), mas ela somente se cumpre de modo pleno em Jesus (Hb 5.1-10; 7.1-25).[4] Assim, o que Deus quer transmitir aos ouvintes do profeta é a esperança e a certeza da vinda do rei que não somente assumiria a frente do governo, mas também do culto. É claro que há quem defenda que Josué e Zorobabel seriam coroados e cooperariam entre si. Porém, os livros de Ageu e Zacarias desde o início já demonstram a realidade de tal cooperação. Assim, o que esse texto diz é que a mesma pessoa, o Renovo, seria tanto rei como sumo sacerdote em Israel e, em si, uniria perfeitamente as funções. Nesse sentido, a expressão hebraica aqui traduzida como “concordância”[5], que quer literalmente dizer “conselho de paz”[6], expressa a completa unidade dos cargos real e sacerdotal na pessoa do Messias prometido, de modo que iria reinar com justiça e ser o intermediário da comunhão com Deus.
Se o enfoque da mensagem era um evento futuro que deveria produzir esperança e ânimo no presente, o que dizer, então, da cerimônia em si da coroação de Josué? Segundo a indicação do versículo seguinte, ela agiria como uma ilustração do que ocorreria futuramente e, por meio da existência da coroa, seria também um constante e encorajador lembrete (v.14): “E a coroa será para Heldai, para Tobias, para Jedaías e para o formoso filho de Sofonias como um memorial no templo do Senhor”. O texto hebraico traz o nome “Helem” no lugar de Heldai, mas, dado o claro paralelismo entre os versículos 10 e 14, é de opinião geral que Helem é outro nome ou um apelido do próprio Heldai. Quanto a possíveis significados de “Helem”, caso fosse um apelido, a palavra pode querer dizer “força”[7] ou “sonho”.[8] Quanto a Josias, filho de Sofonias, é aqui chamado de “formoso” ou “gracioso”, talvez outro apelido, como o de Heldai, ou um adjetivo que o qualificava. De qualquer modo, os homens que contribuíram para a confecção da coroa, e obviamente o povo que eles lideravam, teriam um constante lembrete guardado no templo. Esse lembrete, um “memorial”, serviria para sustentar a fé e a coragem do povo no que tinham de fazer, como completar a obra de reconstrução do santuário, e no que tinham de suportar, como o domínio político de outros reinos, a oposição e zombaria de inimigos e o aguardo do tempo de restauração. A visualização da coroa os relembraria de que a monarquia israelita não estava morta e que Deus a revigoraria de modo esplêndido.
Junto com a esperança da vinda do rei, figurava a esperança de retorno do povo exilado e espalhado pelas nações por causa das consequências dos seus próprios pecados (v.15a): “Aqueles que estão distantes virão e trabalharão na obra do templo do Senhor e vós sabereis que o Senhor dos exércitos me enviou a vós”. Apesar de haver quem reconheça nesses dizeres uma indicação de que o templo seria construído por exilados recém-chegados da Babilônia, o fato de as obras estarem nesses dias em pleno desenvolvimento tira o sentido de tal interpretação. O mais provável é que essa obra do templo seja a mesma prevista nos vv.12,13 associadas à vinda e à atuação do Messias. Com isso, uma nova promessa é acrescentada à esperança judaica: o retorno dos espalhados pelo mundo por causa do pecado (cf. Lv 26.39; Dt 28.64-66). Na mente dos judeus dos dias de Zacarias já figurava a esperança, ligada à vinda do Messias, da repatriação dos exilados junto com a restauração espiritual da nação (Ez 36.24-38). O texto de Ezequiel, citado aqui como referência, contém promessas de perdão e purificação e, associado a isso, retorno do exílio, edificação e habitação das cidades abandonadas, prosperidade e abundância. Ao prever tudo isso, diz o Senhor: “Então eles saberão que eu sou o Senhor” (Ez 36.38b). O mesmo ocorre em Zacarias, visto que as ações benéficas previstas para se cumprirem na vinda do Renovo serviriam também de comprovação irrefutável de que ele é o rei divino, pelo que diz “e vós sabereis que o Senhor dos exércitos me enviou a vós”. O pacote é completo: o Messias será rei e sacerdote, purificará e restaurará Israel, trará os exilados de todas as partes do mundo de volta à terra da promessa, edificará um novo templo, reerguerá as cidades destruídas e o povo, então crente, habitará em paz e justiça desfrutando de prosperidade e abundância. Só Deus mesmo para produzir tudo isso.
Contudo, o Senhor não dá tal garantia sem lembrar àqueles homens da aliança a que estavam atrelados e da responsabilidade que tinham diante dela (v.15b): “Isso acontecerá quando vós déreis ouvidos à voz do Senhor, vosso Deus”. A preposição aqui traduzida como “quando” também pode significar “se”. Desse modo, a promessa de restauração seria condicionada à obediência e poderia nem ocorrer. Esse não é o sentido do texto como um todo, nem uma ideia compatível com o caráter fiel de Deus. Na verdade, as palavras do Senhor, ilustradas pela cerimônia de coroação de Josué, eram a garantia segura de que ele enviaria o rei eterno para guiar Israel. Porém, isso não aconteceria sem que trabalhasse no coração do seu povo (Jr 31.31-34). Por isso, uma atitude de duplo impulso deveria ser cultivada entre aqueles homens. A atitude deveria ser de obediência a Deus e os impulsos que a sustentariam seriam de assumirem a responsabilidade de serem bons servos, por um lado, e de dependerem do Senhor para a realização da sua tarefa, por outro. O fato é que Deus não faria nada pela metade e não aceitaria meio compromisso dos seus seguidores.
Não é possível conter uma esperança desse tamanho apenas em uma época e somente dentro de um grupo. A vinda do Renovo terá abrangência mundial sobre pessoas de todas as nações. Sua promessa de retorno para reinar enche também de esperança e consolo todos os que agora o buscam e creem nele. E assim como para os reconstrutores do templo, a esperança futura nos leva ao consolo e ao compromisso presentes por meio da fé no sacerdote real que nos ama e nos sustenta nas dificuldades até ao dia em que nos receberá eternamente para si: “Portanto, visto que temos um grande sumo sacerdote que adentrou os céus, Jesus, o Filho de Deus, apeguemo-nos com toda a firmeza à fé que professamos, pois não temos um sumo sacerdote que não possa compadecer-se das nossas fraquezas, mas sim alguém que, como nós, passou por todo tipo de tentação, porém, sem pecado. Assim sendo, aproximemo-nos do trono da graça com toda a confiança, a fim de recebermos misericórdia e encontrarmos graça que nos ajude no momento da necessidade” (Hb 4.14-16).

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